O apocalipse segundo Capitão Nascimento


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Com oito semanas de atraso, escrevo um artigo comentando este que é, sem dúvida, um dos filmes mais importantes da história do nosso cinema, por conjugar êxito na bilheteria, qualidade técnica e estética, e abordagem de um tema que, de tão atual, explodiu na mídia nacional e internacional com os acontecimentos dos últimos dias no Rio de Janeiro.

Não me faltaram vontade nem ideias para escrever, mas a minha perplexidade diante do filme me paralisou. O título deste artigo me veio logo após assisti-lo pela primeira vez, na tarde do dia de estreia. Como um tiro de calibre 12, a trama me atravessou subitamente, espalhou as vísceras do meu otimismo e deixou no meu peito um buraco do tamanho de uma laranja, extraindo de mim toda a expectativa de que as coisas pudessem ser melhores neste mundo. Era o fim que estava próximo e só se poderia mesmo esperar a paz no mundo vindouro, não mais neste mundo corrompido em que vivemos, com traficantes cruéis e policiais e políticos corruptos. Certamente, depois dos últimos acontecimentos na minha querida cidade, centelhas de esperança neste mundo e nas pessoas que fazemos parte dele começaram a me tocar. Não sei se é leviano da minha parte dizer que os ataques incendiários a veículos e o terror que nos fez evitar sair de casa (até mesmo durante o dia) acabou sendo benéfico porque impulsionou as autoridades a tomar providência, com a ocupação de duas comunidades antes consideradas intransponíveis. O fato é que, nas comunidades onde a polícia e as Forças Armadas atuaram, o tráfico parece ter sofrido mesmo uma grande derrota e as pessoas de bem que vivem lá vão poder viver em paz pela primeira vez depois de muito tempo. Se é que viver num lugar com policiais armados de fuzil em cada esquina pode ser chamado de “paz” — E já começam a aparecer as denúncias de abuso de poder por parte dos policiais presentes nessas comunidades “pacificadas” (com aspas não por ironia, mas sim por desconfiança).

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Bem, como não sou analista político ou de segurança, não me estendo nos comentários sobre estes eventos e prefiro voltar ao filme, tema sobre o qual igualmente não sou especialista, mas me atrevo a tratar. Começo tratando da minha perplexidade diante do filme, que tanto me marcou mas sobre o qual não consegui escrever (até hoje) mais do que alguns parágrafos confusos, que acabei por abandonar. Uma vantagem de escrever sobre um filme semanas depois de sua estreia é o fato de que a grande maioria dos interessados já o assistiu; portanto, posso comentar o filme sem me preocupar em revelar detalhes importantes. E toco logo na minha ferida aberta: a morte de Mathias. Este é, para mim, o ponto mais traumático no filme. Até hoje não consegui digerir aquela cena. Como quase todo habitante do planeta que tem acesso à TV, cresci numa tradição de filmes roliudianos em que o herói é imortal ou, nos raríssimos casos em que morre, isso não acontece sem que antes triunfe sobre o mal ou “passe o bastão” para outro que continuará sua missão. Porém, Tropa de elite 2 é filme de gente grande, mais inteligente e adulto e não se importa em desestabilizar o espectador, tirando dele o chão sem nenhum aviso prévio. É uma ação cirúrgica sem anestesia: um personagem carismático, honesto, justo, incorruptível, morre com um tiro pelas costas dado por um companheiro que não quer permitir que ele faça a coisa certa. Seu corpo fica jogado, estirado no chão, mais um entre tantos que aparecem diariamente nas favelas cariocas. Não há glória, não há reverência, não há respeito e não há choro. Na cena seguinte, seu mentor, o Capitão Nascimento, lamenta sua morte, mas a trama segue. Para mim, o filme não é mais o mesmo depois desta cena, que aparece lá pela metade de suas duas horas de duração. A chama de esperança se enfraquece e se encaminha para esvair-se com o vento forte de hálito podre que sopra dos muitos agentes de corrupção (que, vale lembrar, é uma forma de pecado): policiais, políticos, agentes penitenciários.

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Neste segundo filme, embora mais econômico e menos explícito nas cenas de tiroteios e torturas que o primeiro, a morte ganha contornos mais sombrios e cruéis. Lembro-me de ouvir Quentin Tarantino dizendo que, em Cães de aluguel (Reservoir dogs, 1992), resolveu filmar uma cena de tortura, em que um bandido corta a orelha de um policial, fora de quadro (ou seja, nós apenas ouvíamos, mas não víamos nada, já que a câmera estava apontada para outra direção) porque não estava conseguindo um bom resultado filmando diretamente. No fim, reconheceu que, deste jeito, a cena ficou bem melhor do que esperava originalmente. De fato, ouvir o policial gritando, sem saber realmente o que estava acontecendo, gera uma angústia no espectador que talvez uma imagem não possa alcançar. E está lá em Tropa 2, muitas vezes, a sugestão da violência em vez da violência explícita: um cadáver no chão de uma casa, cadáveres queimados no meio do mato, cadáveres num barco de luxo. E, somado a isso, ameaças de morte aqui e ali, ou simplesmente o medo da morte por parte de tantos personagens. Porém, a sombra da morte recai mais fortemente sobre o Capitão Nascimento, que sofre uma emboscada logo na primeira cena para desencadear uma nova trama em flashback, como no primeiro filme. Daí, percebe-se que o carisma e intensidade do personagem de Wagner Moura não se deve apenas ao talento do ator ou às suas frases de efeito, mas também à sua habilidade como narrador. Só que aqui não temos apenas um “narrador-personagem”, pois Nascimento (nome que neste segundo filme contrasta de forma mais intensa com a ideia de morte) não apenas narra e vivencia a história, mas também a comenta. E seus comentários, do alto de seus anos de experiência como oficial do BOPE, são banhados com a viscosidade e o gosto amargo do sangue de policiais, traficantes e inocentes que encontrou ao longo de tantos anos. E esse sangue o sufoca, tira seu sono, o desestabiliza, lhe rouba o humor e o sorriso (que só parece reencontrar em um único momento com o filho adolescente), e quase lhe custa sua família.

Ao longo de sua jornada, Nascimento é chamado para ser o profeta detentor da verdade que todos já viram mas se negam a admitir: é chegado o fim. “This is the end”, como cantava Jim Morrison na cena inicial de Apocalipse now, de Francis Ford Coppola, em que o ventilador de teto no quarto do personagem de Martin Sheen se funde com as hélices dos helicópteros estadunidenses que despejam napalm sobre os vietnamitas.

É chegado o fim – essa foi a mensagem que martelou na minha cabeça durante aquelas duas horas de projeção de Tropa 2.

Porém, como um bônus interativo que nenhuma ferramenta tecnológica é capaz de oferecer, a própria realidade nos ofereceu uma sequência para o filme, quase um Tropa 3, como muitos se referiram nas redes sociais da internet às imagens que vimos recentemente na TV, algumas das quais viraram um DVD vendido pelos camelôs cariocas com o título de Terror no Rio 2010. E, em meio a estes enfrentamentos entre Estado e traficantes, surgiu em mim a sensação (que só não será ingênua se for divina) de que é possível mudar o status quo, de que não é chegado o terror nem o fim, mas sim a esperança, a qual é difícil de se entender em meio a soldados e tanques de guerra num ambiente urbano, mas, mesmo assim, é passível de se acreditar, pois é banhada em fé. “Porque, na esperança, fomos salvos. Ora, esperança que se vê não é esperança; pois o que alguém vê, como o espera?” (Rm 8.24). E respiramos um pouco aliviados e eu consigo, finalmente, escrever meu texto sobre o filme, tarefa a que me incumbi desde antes da estreia. Porque missão dada é missão cumprida, parceiro.

Por Wagner Guimarães


Wagner tem 31 anos, carioca, é formado em Letras pela UERJ e atua como professor de Português e Espanhol. Também é tradutor e revisor, tendo feito diversos trabalhos para a Editora Ultimato e campanhas de mobilização social.
Publicado originalmente em Novos Diálogo

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