Teoria da nova elite

Esse texto descreve alguns comportamentos que se observa atualmente na nossa geração.

Teoria da nova elite
por Fernando da Mota Lima


Minha identidade?

Sou pós-moderno, narcisista, consumista e high-tech. Ah, também sou rico, ideólogo intelectual da nova elite.

Religião?

Tenho a minha, que misturo sem preconceito com tudo que me torne mais livre, resolvido e saudável. Acho que religião é hoje um investimento e é bom que assim seja. Quem hoje pensaria em guerra religiosa no Ocidente? Só se fosse por acidente. Por que eu teria pudor de traduzir Deus nos termos de minha ética utilitária? As novas religiões, os pastores, hábeis investidores no mercado da fé, também as religiões tradicionais, todos estão adotando esse novo perfil religioso. Estou apenas remando com a corrente.

Preconceito?

Corta essa, galera. Nenhum. Defendo a diferença, todo tipo de diferença. Por isso estou com a diferença da mulher, sempre oprimida nessa sociedade machista, com a diferença gay, com a igualdade de todos. Logo, estou também com a igualdade racial e a liberdade religiosa.

Felicidade?

Totalmente. Como o Estado brasileiro é o Estado patrão, o Estado provedor, o Estado mãe das tetas fartas, concordo que a felicidade deve ser objeto de uma política de Estado. Melhor dizendo, é dever do Estado garantir a felicidade de todos. Afinal, não é pra isso que vivemos no país de todos?

Autoestima?

É a base de tudo, meu. Acho que o publicitário que levantou essa bola trouxe uma contribuição fundamental para a felicidade na sociedade das massas, a realização da felicidade nas condições do capitalismo competitivo em que passamos a viver. Não compreendo a modéstia desses publicitários geniais que tramam nos seus gabinetes coisas geniais como o princípio da autoestima, difundem isso no mercado e no entanto se escondem. Sem autoestima não chegamos a lugar nenhum. Como intelectual e escritor, acredito sempre em mim consciente de que a opinião alheia, sobretudo a dos meus pares, é a fonte do meu sucesso, da minha realização profissional. A primeira coisa que faço, quando acordo todos os dias, é me olhar no espelho e dizer para mim próprio: cara, você é a pessoa mais genial do mundo, você é um vencedor. Depois disso vou para a luta certo de que transformarei todas as minhas ambições em realidade.

Ambições?

São o que mais tenho. Tenho tantas, meu, que preciso tomar umas drogas pra nocautear a insônia. Quero tudo e mais alguma coisa. Como intelectual, apareço literalmente em todas as feiras literárias. Se a literatura importa? Claro que sim, contanto que eu apareça. Não existe coisa mais fácil do que me achar numa feira literária. Basta ir aonde estão as câmeras, os escritores da moda, os astros da mídia e sobretudo os cantores, que são o verdadeiro foco das feiras. Portanto, melhor estar perto de uma guitarra ou violão do que perto de um livro ou de um laptop.

Ética intelectual?

Óbvio. Um intelectual que se preze não pode prescindir da ética. Quando resenho um livro, por exemplo, escolho uma obra sempre para falar bem. Escolho o autor vivo a quem tenho acesso e portanto pode também me promover. Qual o sentido de louvar os clássicos, todos há muito bem enterrados e portanto inoperantes no mercado? Que lucro posso eu esperar de Shakespeare, Machado de Assis, Conrad, Italo Svevo, Auden…? Deixo essa função para os críticos acadêmicos, que apostam sempre no certo, no já estabelecido. Com meu editor – de editora, blog ou periódico – procuro sempre concordar, sobretudo quando discordo. Como aparecer polemizando com os companheiros de profissão, detonando uma obra ou um autor que pode me garantir muitos rendimentos futuros?

Se sofro do tédio da controvérsia, como Machado de Assis? Depende. Se for controvérsia para me promover, fique certo de que entrarei na luta sem transigir. A controvérsia intelectual ou a polêmica literária importam na medida em que rendem dividendos publicitários. O público não está interessado no debate de ideias, mas sim nas pessoas que debatem as ideias. Além disso, não existe nada mais relativo do que gosto literário. Assim, não há como determinar se Machado de Assis é melhor do que Paulo Coelho. É tudo questão de gosto ou opinião pessoal. O que afinal importa é o rendimento promocional da polêmica. Já imaginou o que não me renderia uma polêmica com Chico Buarque ou Caetano Veloso, com Paulo Coelho ou Jô Soares?

Política?

É claro que tenho convicções políticas. Só que não são mais aquelas da militância tradicional e antiquada. Não aguento mais esse papo weberiano de ética da responsabilidade, muito menos ética de convicção. Quero dizer, devemos adotar a ética da responsabilidade na medida em que ela garanta resultados traduzíveis em fonte de renda. O negócio é calcular resultado, a ética do cálculo e benefício. A ética careta malha Lula e o PT somente porque souberam astutamente se apropriar das práticas dos grupos políticos tradicionais. A ética careta ataca Lula simplesmente porque Lulinha, símbolo de uma nova elite, enriqueceu em poucos anos, dizem que adotando meios ilícitos. Ora, para mim isso é antes de tudo prova de competência. Ataca ainda o PT e seus aliados simplesmente porque blindaram Lula quando pipocaram escândalos que, vemos agora, deram em nada. A população, o povo brasileiro que precisa de trabalho e renda, que quer legitimamente acesso ao mercado, o povo não dá a mínima para isso. Basta observar a aprovação de Lula sem precedente em toda a nossa história política. Concluindo, os resultados estão aí à vista de quem queira ver. A ética careta e ideologicamente anacrônica não vê porque é presa do preconceito contra um presidente que veio lá de baixo e não passou pela universidade. E daí? A universidade está cheia de gente que não sabe nada do que Lula sabe. Acima de tudo, não é capaz de ganhar nada do que Lula ganhou. O que importa é o resultado, o dindim no bolso.

Se com Tiririca pior fica?

É uma. Pensei que não ficaria, mas pode ficar. E daí? Se ficar pior, não será por culpa dele, muito menos minha.

Uma política para os pobres?

Por que vou me preocupar com isso? Aliás, ela já existe desde que Lula transformou o Brasil no país de todos. No mais, deixe que os pobres cuidem de sua pobreza, que não é em nenhum sentido parte da minha responsabilidade. Se fosse, criaria uma ONG para faturar ainda mais, como faz muita gente de sucesso que conheço. Catador de lixo é investimento, meu. Um conselho que te dou de graça: invista numa ONG chamada Salvador do Lixeiro. Esse papo piedoso sobre a pobreza, a desigualdade existente no Brasil, não passa de populismo da velha esquerda. Aliás, como bem disse Joãozinho Trinta, quem gosta de pobre é intelectual. Ou não foi isso que ele disse? Ou não foi ele quem disse? Tenho coisa mais importante para fazer e pensar.

Se sou um rebelde sem causa?

Claro que não, meu. Tenho causa, sim. Se escolho, e estou sempre exercendo minha liberdade de escolha, isso é já uma evidência de que minha rebeldia tem causa. Escolho minha grife. Escolho meu carro. Escolho entre a Skol e a Antarctica. Escolho minha gata não só por amor, mas também por saber que ela corresponde a meus ideais de mercado e afirmação da minha identidade. É no mercado que a gente encontra a alma gêmea e assim promove a síntese entre a tradição romântica e a bolsa de valores. Escolho entre Messi e Kaká. Escolho meu ídolo do Big Brother Brasil baseado na política promotora da diferença, que é a minha praia. Escolho a telenovela que promove a diferença. Não vou sair por aí beijando homem, meu, mas defendo a telenovela que mostra homem beijando homem. Não gosto dos negros que moram no meu condomínio nem acho que empregada doméstica deva usar elevador social, mas defendo o direito de eles ocuparem seu lugar na sociedade. Como já observei, o país é de todos. Taí uma frase que eu gostaria de ter criado. Você não imagina o quanto invejo o publicitário que bolou essa frase.

O ser que mais amo?

São dois, não um: Bill Gates e Lulinha, meus cãezinhos adorados. Não sei de dito mais verdadeiro que este: o cão é o melhor amigo do homem. Entre nós, eu e eles, não existe concorrência, conflito de opinião, choque entre vontades, a guerra que a todo instante decretamos entre nós, humanos, em nome do princípio da liberdade de cada um. Se as pessoas fossem como Bill Gates e Lulinha, o mundo seria o paraíso.

Se escolho ser eu?

Casseta e planeta! Claro que escolho ser eu e sei quem sou. Sou o que o espelho reflete. Já imaginou a vida de um intelectual como Nietzsche, por exemplo? Lembra como acabou, onde acabou? Quero é cuidar de mim, meu. Ser eu é ser saudável. Só me falta agora uma coisa: o dinheiro da entrevista que previamente acertamos. Vamos nessa.

Fernando da Mota Lima
Professor de sociologia da Universidade Federal de Pernambuco
Publicado originalmente no Blog Literatura e Crítica Cultural

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