O Diário de Lore Dublon

O portal de notícias Estadão publicou o diário da jovem judia alemã Lore Dublom, que tinha 13 anos quando começou a escrever. Preencheu 28 páginas em um caderno, que foi guardado no baú de sua família por 68 anos. O relato pueril em suas páginas, no entanto, é tomado por narrativas sobre fugas, descobertas, perseguição e ódio escritas em alemão e francês entre março de 1941 e 8 de janeiro de 1942. 

Ao mesmo tempo que mostra o jeito adolescente da época, o díario de Lore mostra naturalmente a chegada da guerra. Quem está lendo ou já leu o livro A Menina Que Roubava Livros pode conferir de perto os acontecimentos na época do nazismo por uma nova perspectiva, a visão do adolescente. Segue um trecho do diário:

08 de janeiro de 1942:

... Fui ao cinema com Suzanne, vi o filme mais lindo da minha vida: ‘Kora Terri’, com Marika Rökk e Joseph Sieber. Ela, Marika Rökk, faz um papel duplo. Quero entrar logo no Bund (Liga) Sionista. Porque eu também anseio ir à Palestina, terra de nossos antepassados. Quero virar devota. O bom Deus me ajudará nisso. Tomara Deus que me possa encontrar com os queridos avós lá. Então também poderei comer Kosher. Carne de porco não como mais desde a terrível noite em La Panne. Quando aconteceu o bombardeio, o fogo tomou conta do quarteirão e chegou a cinco casas da nossa. Em frente, também pegou fogo. As bombas caíam interminavelmente. Da entrada da cidade, os alemães atiravam para dentro. Os ingleses em fuga estavam no outro extremo. Na frente da nossa casa, diretamente, estava montada uma Metralhadora. Atrás da casa, no porto, os ingleses em seus navios também atiravam. Para comer, não tínhamos nada além de ovos duros, que por muito tempo não aguentei mais ver, e chocolate. Estávamos sentados num porão, com 32 pessoas muito devotas e durante toda a noite recitamos nossa Oração dos Mortos.

Nesse momento, eu prometi para mim mesma que se escapássemos inteiros desse horror, não comeria nunca mais qualquer pedaço de carne de porco.

Vou te contar rapidamente, diário, como foi nossa fuga:

Manhã de guerra: acordada por tiros e disparos fortíssimos no ar. Papai disse: Guerra! Todos vestidos, ficamos acordados no corredor, até que os tiros cessassem. Telefonamos para o tio Mäxchen (diminutivo de ‘tio Max’), mas ninguém respondeu. Chegou uma ordem para que todos os refugiados de nacionalidade alemã se apresentassem. Nós já havíamos perdido a cidadania alemã, mas nos apresentamos assim mesmo. Chegando lá, as mulheres e crianças foram dispensadas. Os homens ficaram. Nos despedimos lá pelas 14 horas. Às 17 horas, papai e o tio Erich voltaram. Os sem cidadania (expatriados) foram dispensados. Quase todos os moradores da nossa rua, tomados pelo pânico, estavam fugindo em direção à França. Nós fomos para a casa do tio Mäxchen, nos arredores. Pela primeira vez, a casa toda estava às escuras. Fomos consultá-lo para o que fazer: ficar, ou partir também? A estrada que conduzia a Dilbeek estava preta de gente. Ele disse que não queria nos influenciar, mas que ele ficaria. Isso foi no sábado. Na terça, quando chegou o tio Erich, o tio Max já estava sentado no carro e disse que deveríamos ir embora imediatamente. Tio Erich retornou tão rápido quanto podia, parte de carro, parte andando, porque os bondes já não funcionavam. Duas horas mais tarde, ele golpeou freneticamente a nossa porta. A campainha já não funcionava. Dizendo: preparem as malas imediatamente, vamos para a Gare du Midi (Estação Central). A estação estava toda preta de gente, querendo embarcar. As passagens eram de graça, assim fomos de primeira classe. Mas foram16 horas, em pé o tempo todo. Depois de Ostende não senti mais minhas pernas.

Na estação, as irmãs da Cruz Vermelha aguardavam os refugiados, ou, mais bonito, os ‘evacuados’, com bebidas. Almoçamos no restaurante fino de um hotel. (No dia seguinte, já havia sido destruído.) Naturalmente, foi impossível arranjar um quarto decente.

Por fim, num bar do porto, conseguimos dois quartinhos. Fomos dormir às 21 horas para descansar bastante. Às 21h30, caiu a primeira bomba. As janelas se abriram de golpe, por causa da pressão. As cortinas esvoaçaram. Nos vestimos num piscar de olhos para descer até o porão.

O bar ficava a dois minutos da estação. Ficamos todos na diminuta adega, no porão, com o cão da dona do bar. O homem deitado ao meu lado beijava as pontas dos meus dedos sem parar. No outro dia, Ostende oferecia um aspecto lamentável por causa do bombardeio. Na cidade, ouvimos que não era bom ficar em Ostende mesmo, então seguimos para La Panne.

No momento em que tentávamos tomar o trem praiano, tocou a sirene de alarme. As pessoas que estavam dentro do trem queriam sair, e nós, ainda do lado de fora, tentando entrar. Empurrões, uma confusão medonha. Finalmente conseguimos subir.

No caminho, cruzamos com o tio Max, que gritou: ‘Pension de L'Avenue’, em Dunquerque, é meu endereço. Ficamos lá por três dias! Depois, outra partida. Foi duro deixar a linda moradia, que a dona nos cedera, porque a pensão estava abarrotada."

Tradução: Irene G. Freudenheim


Fonte: Estadão


A Ultimato também publicou na sua revista, edição Novembro-Dezembro/2010, a matéria de capa sobre o sofrimento no período do Nazismo. Vale a pena conferir, principalmente a história de Viktor Frankil. Acesse aqui

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