O desafio de Narciso
“Sabe, porém isto:
nos últimos dias, sobrevirão tempos difíceis, pois os homens serão egoístas,
avarentos, jactanciosos, arrogantes...” (2Tm 3. 1-2).
O
cristianismo enfrenta hoje o extremo desafio de uma cosmovisão narcisista, de uma
mentalidade e uma cultura radicadas no “eu”, com uma percepção distorcida da
realidade. Esta expressão “narcisismo” tem origem no mito grego de Narciso, um
jovem belo e atraente, porém arrogante e orgulhoso. Amaldiçoado por uma deusa
morre apaixonado por seu reflexo na água sem jamais conseguir ser correspondido
pelo objeto de sua devoção. O médico e psicanalista Sigmund Freud usou o termo
“narcisismo” para identificar e descrever a primeira fase da infância quando a
criança não é capaz de distinguir sujeito e objeto, quando tudo é para ela uma
extensão de si mesma. Mais tarde, Freud encontrou traços similares em pacientes
adultos. Estes pacientes demonstravam excessiva preocupação com o ego a ponto
de distorcerem a realidade das coisas e dos fatos. Por não conseguirem conceber
a existência do outro adequadamente, os narcisistas tendem a usar a realidade
como um espelho para afagar o próprio ego. O outro está ali apenas para ficar
impressionado, apenas como alguém disponível a ele. Na verdade o narcisista
despreza o outro enquanto é dependente emocional dele, o que torna a sua vida
superficial, vazia e cheia de temores. O Narcisista não quer relações, quer
somente recompensas emocionais. Infelizmente este sistema de valores e de vida
narcisista alcançou também os cristãos.
Alguns sintomas podem ser fortemente
sentidos:
1. Um forte sentimento de autossuficiência. Ninguém tem nada a
ver com a minha vida, eu sei o que é certo e errado. “No meu nariz mando eu”.
Não preciso de ninguém para ser feliz enquanto eu tiver a mim...
2.
Um sentimento de desprezo e indiferença pelo outro. “Você pra mim é problema
seu.” Prezo a minha singularidade e a minha privacidade tanto quanto não me
interesso pela vida e problemas dos outros. Neste contexto não há amizades e
nem fraternidade, apenas relações de interesse mútuo, sem maiores compromissos.
3.
Consumismo exacerbado. Ser é possuir. O marketing explora a
carência do narcisista levando-o a se sentir ainda
mais insatisfeito com a vida do que já é se não possuir aquela marca, grife ou
produto. O consumismo desenfreado dá vida ao descarte irresponsável e ao
endividamento desnecessário.
4. Hedonismo: a busca pelo prazer
instantâneo aqui e agora. Uma vida organizada tendo o prazer e a satisfação
como o centro motivador. O trabalho, as artes, a vida social etc. devem
encontrar seu pleno significado no prazer sem compromisso e sem consequências.
A cura para o narcisismo na Igreja e na Cultura:
1. A descoberta da
realidade de Deus. Deus não é a solidão radical do absolutamente só. Deus é
Trino, é um Deus-Comunidade, um Deus de relações como Pai, Filho e Espírito
Santo. É um Deus que gera comunhão feliz e eterna com base no amor recíproco,
na alteridade, na vida para o outro. É um Deus que tendo vida em si mesmo
jamais quis viver ensimesmado em sua glória. Das misteriosas e amorosas
relações na Trindade Bendita, surgiu o plano maravilhoso da criação do universo
e do homem. Deus chamou todas as coisas à existência para compartilhar com elas
sua vida e sua felicidade. A Santíssima Trindade nos ensina a viver em
comunidade!
2. A redescoberta da realidade do Filho de Deus, que ao
contrário de Narciso, não se apegou à perfeição de sua beleza eterna antes,
assumiu a forma de escravo, não quis ser servido, mas veio para servir. Não
quis recompensas emocionais, mas amou incondicionalmente os seus, amou-os até à
cruz. Do Filho amado aprendemos que temos vida na medida em que a gastamos para
os outros. Que somos interessantes na medida em que nos interessamos
graciosamente pelo próximo.
3.
Redescobrir a realidade do Espírito Santo que é doador da vida e de
todos os dons e não um acumulador, um consumista desenfreado. A maravilhosa
realidade do Espírito Santo nos impele à generosidade, à solidariedade e à
partilha e nos ensina a possuir para distribuir e nunca para reter. Também a
dar com largueza sem jamais desperdiçar.
4. Redescobrir a maravilhosa
realidade da Cruz. Do sacrifício do calvário aprendemos a organizar a nossa
vida não na busca do prazer pelo prazer, mas encontrar deleite somente no
compromisso com a verdade, a justiça e a vontade de Deus. Da realidade da cruz
descobrimos nosso verdadeiro valor e nossa mais sublime vocação.
Reverendo Luiz Fernando
Pastor da Igreja Presbiteriana Central de Itapira
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